segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O Ritual Dos Estropiados





O RITUAL

"Lembranças, fragmentos de pensamentos que tivemos, vidas que vivemos. Este é o nosso purgatório, nosso inferno. Sim, estamos mortos. Nós destruímos a terra e já não mais vivemos e tudo o que nos restou foram as lembranças, fragmentos de pensamentos que tivemos. Estamos mortos agora...".

Poesia dos Estropiados

Recitavam as muitas vozes, um aglomerado de mutilados radioativos que viviam em cavernas nos subterrâneos dos desertos atômicos, os Menutaqim[1], reunidos na chamada Gruta da Radiância, dentro da qual se agrupava na data anual do brilho nucelar. Era o que chamavam agora de “O Ritual”. Muitas velas feitas a partir do óleo extraído de uma planta da família das oleáceas, a Osmanthus Decorus, que cresce nos desertos da antiga Turquia, acesas distribuídas entre os habitantes da furna e espalhadas pelo lugar, iluminavam o ambiente da gruta e através de suas luzes cintilantes se podia distinguir os estropiados sobreviventes do Holocausto atômico e seus filhos nascidos depois do Ocaso da humanidade. A poesia recitada uma vez a cada 778 dias[2] na data das detonações atômicas que assolaram a humanidade é chamada de “O Poema do Ocaso” e havia sido canalizada por um judeu místico que fora chamado depois do Holocausto, claro, de “O Profeta Do Fim Dos Dias”, declamado ao som de um único instrumento de cordas e sob as luzes de 778 tochas acesas seguras pelas crianças nascidas após o cogumelo nuclear num dos dois únicos idiomas que lhes havia permanecido, suas línguas natais, o Esperanto e o Latim:

“Ni detruas la teron kaj ni ne plu vivas, kaj ĉio, kion ni forlasis, estas la memoroj, fragmentoj de pensoj, kiujn ni vivis, tio estas nia purgatorio, nia infero. Ni mortis nun...”

            Declamaram a 778º e ultima vez abaixando as cabeças em silencio por 778 segundos contados por uma ampulheta de areia, treze longos minutos na calada do ocaso vermelho do dia dezesseis de julho de cada ano, silencio quebrado apenas pelo pranto nascido da lembrança do Holocausto Nuclear.

            A contagem para o Ritual se iniciava quarenta e oito dias antes da data das detonações e, então, no 778º dia a celebração fúnebre tinha início.

            Depois de o declamarem em Esperando, as mulheres o repetiam declamando-o em Latim, sua segunda língua para a perpetuar e também ensinarem o idioma aos sobreviventes.

            “'Memories cogitationes superaverunt fragmenta ne habebat vivimus habitat. Hic noster purgatorium nostrorum inferno. Ita, mortui sumus. Nos terram et destrui non vivet: et omnis qui suus reliquisset nobis in memoriam, cogitationes fragmentorum plenos habebamus. nos autem mortuus es ... ".

            - Agora vamos recitar a Poesia do Silencio – conclamou com voz suave o líder dos cavernantes estropiados sobreviventes do Shoá Atomit[3], um homem alto com o deformado rosto coberto por trapos velhos em cujo rosto lhe faltava um olho, o esquerdo e na qual se podiam ver os ossos da face.

            Silêncio! As vozes se calaram. O único som que ouço é o do vento uivando sobre as pedras, ruínas das antigas construções, monturos assolados pelo tempo que os castiga como um chicote invisível. Mesmo os demônios estão em silêncio agora...
Não ouço mais o coaxar dos sapos e nem o som dos grilos que preenchiam a noite com suas canções. O galo se foi. Sua voz foi calada há quarenta e dois invernos. O único som agora é a voz síntese do velho hardware, aquela cabeça metálica de olhos vermelhos colocada em cima do velho balcão de mármore.
- Água senhor? – Ela pergunta – O teor de radiação está baixo hoje – terminou. A mesma música entoada uma vez na semana. As vozes? Elas se calaram. Os demônios estão em silencio agora.
Ahh! Eu desejava ouvir a voz do velho rabino, aquele de barbas brancas de longos peyot, quando ele dizia para prestarmos atenção às pequenas vozes, as vozes dos humildes, andarilhos iluminados, centelhas do alfabeto místico, avisando a humanidade que o dia chegaria, quando as vozes se calariam.
Lá no interior, os demônios continuam em silêncio. Suas vozes foram silenciadas pela voz da maldade que plantara residência na câmara esquerda do templo do coração do homem.
O gueto está frio hoje. Pessoas se reúnem ao redor do fogo aceso dentro do velho barril de petróleo, sangue negro, chamavam-no. Ele não existe mais. As veias estão secas e o sangue já não corre mais...
As manchas brancas cobrem a pele. Deveria ser um bom sinal, mas não é. A lepra voltou devorando a alma dos homens, mulheres e crianças. Nem os animais escaparam. Os contaminados são exilados. Eles os mandam para o vale do esquecimento onde a voz jamais se reerguerá. Eles a usaram maliciosamente. Difamaram com ela. Suas calunias foram lançadas ao vento como as folhas do velho carvalho que ficava na floresta de Chaiim. Ele também se calou. O vento já não uiva mais por entre os seus frondosos galhos.
Ahh! Onde está a voz do rabino? Foi calada pelos religiosos dogmáticos. Suas centelhas luminosas já não mais crepitam pelo ar. Mesmo os demônios não falam mais. Calaram-se no interior.
Onde estão as vozes dos poemas e dos poetas? Calaram-se também. Elas causavam comichões nos ouvidos da humanidade. Elas acusaram: - Foram os poderosos, os líderes das nações, em seus palácios decorados com sangue. Sangue dos inocentes. Eles as fizeram calar. Elas causavam comichões aos ouvidos do poder.
O brilho nos cegou os olhos. Foi em 2029. Detonaram a velha arma russa trocada por um pedaço de pão para alimentar as crianças famintas. Todas elas morreram com o calor nuclear.
Silêncio! As vozes se calaram. O único som que ouço é o do vento uivando sobre as pedras, ruínas das antigas construções, monturos assolados pelo tempo que os castiga como um chicote invisível. Mesmo os demônios estão em silencio agora...
Ah! Onde está a voz do velho rabino? Eu desejava ouvi-la agora. Calou-se. Mesmo lá no interior há silencio agora, nem mesmo os demônios sussurram mais.

Silencio... declamaram os Menutaqim, os estropiados, mutilados radioativos, almas sobreviventes em casulos apodrecidos.

“Quais mistérios poderiam haver agora para aqueles cujas as os ossos das faces lhes são visíveis” – Dizia a velha placa feita de madeira com estes dizeres escritos à mão e fincada na entrada do desfiladeiro que conduzia à vila dos estropiados.

As recitações haviam durado grande parte do dia e agora que o poente vermelho se aproximava, todos sairiam das cavernas e grutas para contemplar o Ocaso rubro na data do holocausto nuclear celebrada a cada dois anos e centro e trinta e dois dias. Mesmo num mundo destruído pela imolação atômica, o poente carmim eram mesmo contemplativo.

“E agora não haverá mistérios, pois, a lua não brilha mais, ela cintila sangue e as faces contemplam o rubor do perpétuo ocaso vermelho, o reflexo carmesim do próprio pecado” – declamava ao poente rubro todos os dias o Profeta do Final dos Tempos, o andarilho das sendas cintilantes da antiga sabedoria. “E agora não haverá mistérios...”



[1] Mutilados
[2] Dois anos e cento e trinta e dois dias.
[3] Hebraico para Holocausto Atômico.

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