O RITUAL
"Lembranças, fragmentos de pensamentos que tivemos, vidas que
vivemos. Este é o nosso purgatório, nosso inferno. Sim, estamos mortos. Nós
destruímos a terra e já não mais vivemos e tudo o que nos restou foram as
lembranças, fragmentos de pensamentos que tivemos. Estamos mortos
agora...".
Poesia dos Estropiados
Recitavam as muitas vozes, um
aglomerado de mutilados radioativos que viviam em cavernas nos subterrâneos dos
desertos atômicos, os Menutaqim[1], reunidos na chamada Gruta
da Radiância, dentro da qual se agrupava na data anual do brilho nucelar. Era o
que chamavam agora de “O Ritual”. Muitas velas feitas a partir do óleo extraído
de uma planta da família das oleáceas, a Osmanthus Decorus, que cresce nos
desertos da antiga Turquia, acesas distribuídas entre os habitantes da furna e
espalhadas pelo lugar, iluminavam o ambiente da gruta e através de suas luzes
cintilantes se podia distinguir os estropiados sobreviventes do Holocausto
atômico e seus filhos nascidos depois do Ocaso da humanidade. A poesia recitada
uma vez a cada 778 dias[2] na data das detonações
atômicas que assolaram a humanidade é chamada de “O Poema do Ocaso” e havia
sido canalizada por um judeu místico que fora chamado depois do Holocausto,
claro, de “O Profeta Do Fim Dos Dias”, declamado ao som de um único instrumento
de cordas e sob as luzes de 778 tochas acesas seguras pelas crianças nascidas
após o cogumelo nuclear num dos dois únicos idiomas que lhes havia permanecido,
suas línguas natais, o Esperanto e o Latim:
“Ni detruas la teron kaj ni ne plu vivas, kaj ĉio, kion ni
forlasis, estas la memoroj, fragmentoj de pensoj, kiujn ni vivis, tio estas nia
purgatorio, nia infero. Ni mortis nun...”
Declamaram a 778º e ultima vez
abaixando as cabeças em silencio por 778 segundos contados por uma ampulheta de
areia, treze longos minutos na calada do ocaso vermelho do dia dezesseis de
julho de cada ano, silencio quebrado apenas pelo pranto nascido da lembrança do
Holocausto Nuclear.
A contagem para o Ritual se iniciava
quarenta e oito dias antes da data das detonações e, então, no 778º dia a
celebração fúnebre tinha início.
Depois de o declamarem em Esperando,
as mulheres o repetiam declamando-o em Latim, sua segunda língua para a
perpetuar e também ensinarem o idioma aos sobreviventes.
“'Memories cogitationes superaverunt fragmenta ne habebat
vivimus habitat. Hic noster purgatorium nostrorum inferno. Ita, mortui sumus.
Nos terram et destrui non vivet: et omnis qui suus reliquisset nobis in
memoriam, cogitationes fragmentorum plenos habebamus. nos autem mortuus es ...
".
- Agora vamos recitar a Poesia do
Silencio – conclamou com voz suave o líder dos cavernantes estropiados
sobreviventes do Shoá Atomit[3],
um homem alto com o deformado rosto coberto por trapos velhos em cujo rosto lhe
faltava um olho, o esquerdo e na qual se podiam ver os ossos da face.
Silêncio! As vozes se calaram. O único
som que ouço é o do vento uivando sobre as pedras, ruínas das antigas
construções, monturos assolados pelo tempo que os castiga como um chicote
invisível. Mesmo os demônios estão em silêncio agora...
Não
ouço mais o coaxar dos sapos e nem o som dos grilos que preenchiam a noite com
suas canções. O galo se foi. Sua voz foi
calada há quarenta e dois invernos. O único som agora é a voz síntese do velho
hardware, aquela cabeça metálica de olhos vermelhos colocada em cima do velho
balcão de mármore.
-
Água senhor? – Ela pergunta – O teor de radiação está baixo hoje – terminou. A
mesma música entoada uma vez na semana. As vozes? Elas se calaram. Os demônios
estão em silencio agora.
Ahh!
Eu desejava ouvir a voz do velho rabino, aquele de barbas brancas de longos
peyot, quando ele dizia para prestarmos atenção às pequenas vozes, as vozes dos
humildes, andarilhos iluminados, centelhas do alfabeto místico, avisando a
humanidade que o dia chegaria, quando as vozes se calariam.
Lá
no interior, os demônios continuam em silêncio. Suas vozes foram silenciadas
pela voz da maldade que plantara residência na câmara esquerda do templo do
coração do homem.
O
gueto está frio hoje. Pessoas se reúnem ao redor do fogo aceso dentro do velho
barril de petróleo, sangue negro, chamavam-no. Ele não existe mais. As veias
estão secas e o sangue já não corre mais...
As
manchas brancas cobrem a pele. Deveria ser um bom sinal, mas não é. A lepra
voltou devorando a alma dos homens, mulheres e crianças. Nem os animais
escaparam. Os contaminados são exilados. Eles os mandam para o vale do
esquecimento onde a voz jamais se reerguerá. Eles a usaram maliciosamente.
Difamaram com ela. Suas calunias foram lançadas ao vento como as folhas do
velho carvalho que ficava na floresta de Chaiim. Ele também se calou. O vento
já não uiva mais por entre os seus frondosos galhos.
Ahh!
Onde está a voz do rabino? Foi calada pelos religiosos dogmáticos. Suas
centelhas luminosas já não mais crepitam pelo ar. Mesmo os demônios não falam
mais. Calaram-se no interior.
Onde
estão as vozes dos poemas e dos poetas? Calaram-se também. Elas causavam
comichões nos ouvidos da humanidade. Elas acusaram: - Foram os poderosos, os
líderes das nações, em seus palácios decorados com sangue. Sangue dos
inocentes. Eles as fizeram calar. Elas causavam comichões aos ouvidos do poder.
O
brilho nos cegou os olhos. Foi em 2029. Detonaram a velha arma russa trocada
por um pedaço de pão para alimentar as crianças famintas. Todas elas morreram
com o calor nuclear.
Silêncio! As vozes se calaram. O único
som que ouço é o do vento uivando sobre as pedras, ruínas das antigas
construções, monturos assolados pelo tempo que os castiga como um chicote
invisível. Mesmo os demônios estão em silencio agora...
Ah!
Onde está a voz do velho rabino? Eu desejava ouvi-la agora. Calou-se. Mesmo lá
no interior há silencio agora, nem mesmo os demônios sussurram mais.
Silencio... declamaram os Menutaqim, os estropiados, mutilados
radioativos, almas sobreviventes em casulos apodrecidos.
“Quais
mistérios poderiam haver agora para aqueles cujas as os ossos das faces lhes
são visíveis” –
Dizia a velha placa feita de madeira com estes dizeres escritos à mão e fincada
na entrada do desfiladeiro que conduzia à vila dos estropiados.
As recitações haviam durado grande parte do dia e agora que
o poente vermelho se aproximava, todos sairiam das cavernas e grutas para
contemplar o Ocaso rubro na data do holocausto nuclear celebrada a cada dois
anos e centro e trinta e dois dias. Mesmo num mundo destruído pela imolação atômica, o poente
carmim eram mesmo contemplativo.
“E
agora não haverá mistérios, pois, a lua não brilha mais, ela cintila sangue e
as faces contemplam o rubor do perpétuo ocaso vermelho, o reflexo carmesim do
próprio pecado” –
declamava ao poente rubro todos os dias o Profeta do Final dos Tempos, o
andarilho das sendas cintilantes da antiga sabedoria. “E agora não haverá mistérios...”